quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Perspectiva 2010 O ano zero da economia limpa (continuação) Ecodesign

(Continuação da matéria da revista Veja de dezembro de 2009, que estou postando em partes)


1. Ecodesign

A reinvenção da luz
A lâmpada incandescente se apaga depois de 130 anos, em um dos mais fascinantes movimentos de inovação tecnológica de nosso tempo

Peça a uma criança para desenhar uma lâmpada – 100% delas farão um globo bojudo com um filamento em seu interior, no traço simples sem firulas, tal como foi patenteado pelo americano Thomas Alva Edison, em 27 de janeiro de 1880, há exatos 130 anos. Poucos produtos na história da civilização atravessaram um século, o XX, de modo tão decisivo e com tão poucas alterações na forma original. O que mudou, basicamente, foi o fio metálico, que, aquecido, emana calor e luz (90% do primeiro e apenas 10% do segundo, num show de desperdício) – antes ele era feito de carbono e hoje é de tungstênio.

Depois de uma década de lenta agonia – nos anos 1990 surgiram as fluorescentes compactas, que duram oito vezes mais –, as lâmpadas incandescentes, ou elétricas, agora parecem apagar de vez. Em todo o mundo, as legislações as tiram de tetos e abajures. Na Austrália, já em 2010 as de 40 watts não poderão mais ser vendidas. Na União Europeia, uma norma deflagrou a contagem regressiva, a partir de setembro de 2009, que culminará em 2012. Nos Estados Unidos, o limite é 2013. No Brasil, um projeto de lei ainda tramita no Congresso, mas ele trabalha com o mesmo prazo americano. É o fim de uma era.

É o símbolo, do ponto de vista do ecodesign, de todas as mudanças cuja locomotiva é a preocupação com o aquecimento global. Mudou-se o traço a serviço da inovação tecnológica. Na velocidade da luz, as compactas fluorescentes também parecem fadadas a sumir. Serão substituídas pelo LED, o acrônimo de diodo emissor de luz, em inglês. Nessa tecnologia, um semicondutor semelhante ao usado nos microcomputadores, quando atravessado por energia, emite luminosidade. As lâmpadas de LED convertem até 40% da energia consumida em luz. A redução no desperdício traz benefícios evidentes ao meio ambiente.      Nos países onde a eletricidade é produzida a partir da queima de combustíveis fósseis, essa economia significa 11% dos gases do efeito estufa na atmosfera. Se a metade de toda a iluminação mundial fosse convertida à tecnologia LED até 2025, seria possível economizar 120 gigawatts de eletricidade. Isso reduziria as emissões de dióxido de carbono em 350 milhões de toneladas por ano. Nos Estados Unidos, equivaleria a tirar 7,5 milhões de carros das ruas.

A troca das lâmpadas, por seu efeito didático, sempre foi entendida muito mais com romantismo do que com ciência. Deu-se a virada, em novembro passado, com um estudo conduzido pela Osram, a empresa alemã de iluminação, que serviu de xeque-mate. A descoberta: ao longo de toda a vida de uma lâmpada de LED – da manufatura ao acender da luz –, a energia utilizada é um quinto da compacta fluorescente, a antecessora natural. Sabia-se que o LED usa ínfima fração de eletricidade de uma lâmpada comum para produzir o mesmo montante de luz, mas havia uma dúvida: a fabricação e a distribuição, mais custosas, não poluiriam mais que as outras, indicando uma morte tecnológica prematura? Não. "Esse estudo entrega fatos onde antes havia apenas evidência emocional", diz Kaj den Daas, chefe executivo do departamento de iluminação da Philips nos Estados Unidos. Recentemente, a Philips lançou um modelo de LED prático, com o soquete igual ao dos bulbos de Edison e com luminosidade equivalente à incandescente de 60 watts. Deve chegar às lojas no fim de 2010.

O desenho dessa peça da Philips (veja quadro) é um aceno aos saudosistas, aos que já lamentam a perda do agradável amarelo das lâmpadas antigas e têm saudade antecipada dos desenhos de nossos filhos. Na Alemanha, tida como guardiã do ambiente, cidadãos estocam as incandescentes antes da morte anunciada. Desde julho, houve crescimento de 600% nas vendas. Ao produzir uma peça parecida no formato com o globo de vidro do fim do século XIX, a Philips fechou um ciclo para abrir outro.

Mas, ressalve-se, tudo é questão de hábito – as lâmpadas de Edison também foram recebidas, na virada do século retrasado para o passado, como afronta aos lampiões de gás e a sua luzinha verde-azulada. E que tal unir a inovação com o passado, o futuro com a nostalgia? Foi o que fez a cidade de Torraca, na região da Campânia, na Itália, que atravessará o réveillon de 2009 para 2010 como a primeira do mundo totalmente iluminada por LED. Ela é pequena, tem 700 ruas e apenas 1200 moradores, mas já virou ícone de sustentabilidade na elegante mistura de ruelas medievais com iluminação do século XXI. Tem sido celebrada, preservadas as diferenças históricas, como o Viaduto Holborn, na Londres de 1882, cujos postes de eletricidade foram acionados por Thomas Alva Edison.

O pioneirismo de Edison
Ele foi o primeiro empreendedor a incentivar o uso de energias alternativas

A primeira vez que a palavra sustentabilidade apareceu no The New York Times com o sentido que leva hoje foi em 1973, durante a crise do petróleo. A expressão ambientalismo despontou um pouco antes, em 1957. Meio século mais cedo, Thomas Alva Edison (1847-1931), o homem que tornou a lâmpada elétrica economicamente viável, já tinha preocupações que apenas recentemente os executivos mais sensatos começam a ter. Em um artigo de 1901, publicado pelo jornal The Atlanta Constitution, ele já sugeria o uso de moinhos de vento de modo a produzir energia para os cidadãos do campo, "para que eles possam ter luz durante a noite", sem depender do petróleo que movia as usinas de eletricidade. A primeira casa movida a energia eólica tinha sido construída em 1888, e a exploração de combustível fóssil mal completara quarenta anos de existência.

Atento ao crescimento do consumo nos Estados Unidos, ele chegou a selar um acordo com Henry Ford para desenvolver um carro elétrico que pudesse rivalizar com o Modelo T, o primeiro a sair em série das linhas de montagem. Ao mesmo tempo, ergueu uma casa ecologicamente correta, a "Residência Urbana do Século XX", com aquecimento feito por meio de claraboias, unidades de aquecimento solar e eólico – além, é claro, de dezenas de lâmpadas elétricas. Com o apoio de um gerador movido a gás, ele conseguia produzir energia para a casa e para a vizinhança. Hoje, pequenas geradoras de energia, descentralizadas e independentes da sobrecarregada rede oficial, são uma das alternativas mais celebradas em todo o mundo. Mas os sonhos de Edison fracassaram – sua residência suburbana foi incapaz de produzir energia própria sustentável, e os veí-culos elétricos deram lugar aos carros movidos a petróleo, economicamente mais viáveis. Mesmo as lâmpadas, que ele imaginava fossem virar produto de massa no fim dos anos 1880, só se espalharam no início do século XX. Havia naquele tempo, como existem hoje, objeções financeiras: "Não há como o sistema elétrico de Edison concorrer com o gás, mesmo que os capitalistas encontrem financiadores que ajudem a contribuir com a ideia em Nova York", anotou um artigo do New York Times em 1880.

Pioneiro, Edison só não está se virando no túmulo, com o fim da lâmpada incandescente, porque foi o primeiro entre os grandes empreendedores a entender a importância de não gastar todos os recursos do planeta e a buscar saídas limpas para a economia suja.

VISIONÁRIO
Inventor do modelo incandescente comercial (patente de 1880 ao lado), Edison já imaginava um mundo de pás de vento como alternativa ao petróleo


Oásis no deserto
Masdar, enclave em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, quer ser a primeira cidade totalmente ecológica do mundo – mas há o risco de ela virar um parque de diversões para excêntricos
           
Abu Dhabi, a capital dos Emirados Árabes Unidos, o oitavo maior produtor de petróleo do mundo, um dos campeões em emissões per capita de dióxido de carbono, é o último lugar onde se imaginaria encontrar o futuro do movimento ambientalista. Pois ali, ironicamente, nasce uma fascinante experiência – a cidade de Masdar, projeto de 22 bilhões de dólares destinado a se transformar no primeiro aglomerado urbano com emissão zero dos gases que provocam o efeito estufa, totalmente movido a energia solar e reaproveitamento máximo do lixo. A arquitetura é do britânico Norman Foster, responsável por obras como a restauração do Reichstag, o Parlamento alemão, em Berlim, e o novo estádio de Wembley, nas cercanias de Londres. As primeiras fundações de Masdar começaram a surgir, firmes e fortes, em 2008. A inauguração está prevista para 2016.

"É uma imagem realmente forte", diz Rajendra Pachauri, o principal executivo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), prêmio Nobel da Paz em 2007. "Um país sem necessidade imediata de diversificação de energia dá um passo à frente, e ele pode servir de exemplo." Convém lembrar que Masdar abrigará apenas 40 000 pessoas – e com pouca gente tudo é mais fácil, especialmente manter o ar limpo. A cidade, que funcionará também como polo de atração tecnológica de energias renováveis – uma espécie de Vale do Silício destinado à sustentabilidade –, tem dois caminhos possíveis. O primeiro: virar laboratório para outras iniciativas na mesma direção, um olhar para as possibilidades do ecodesign aplicado ao urbanismo. O segundo: transformar-se numa espécie de Disney para excêntricos amantes do ambiente, um parque de diversões bilionário, mero oásis no deserto. O risco existe e não pode ser desprezado. "Para mim, é como uma prisão", diz Steffen Lehmann, da Universidade de Newcastle, na Austrália. "Será um enclave verde em meio a uma região do planeta que faz negócios como sempre." Em Abu Dhabi, "negócios como sempre" é sinônimo de gasolina barata e transporte público inexistente. Lá, o consumo de água por cidadão está entre os maiores do planeta. Tanta discrepância ao redor é o que faz de Masdar uma iniciativa que já chama atenção, como uma estufa verde cercada por areia e poços de petróleo.

(segue)

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