" O prezado leitor está prestando atenção? Este ano as
paineiras floriram bem mais cedo. Algumas, na segunda quinzena de fevereiro, o
que configura um recorde espantoso para essa árvore acostumada a soltar suas
flores em abril.
“Também, com o calor
desumano do último verão!”, dizem as pessoas, tentando explicar o fenômeno, mas
sem conseguir aprofundá-lo.
O tema é assaz
complexo, está mais do que na hora de dar um passo à frente na análise da
situação. Pois, sem dúvida, a elevação da temperatura ambiental acelera o
metabolismo das plantas, fazendo com que cada ciclo vegetal seja antecipado.
Seguindo nesse ritmo,
breve as paineiras estarão florindo em janeiro, os jasmineiros mudarão sua
florada de novembro para agosto e assim por diante, até que se consume a
inversão total das coisas.
Chegará talvez o dia
em que as frutas de verão estarão amadurecendo no inverno – com que qualidade
não é possível antecipar, mas elas certamente serão chamadas de frutas da
desestação. Ou antifrutas.Algumas dessas frutas anômalas já estão aí: bananas empedradas, laranjas com a metade do seu corpo tomado por células sem suco, como se os cítricos quisessem virar romãs; morangos com sabor de plástico; tangerinas sem sementes, o que certamente leva as árvores a se perguntar o que estão fazendo nesse mundo se sua missão natural, perpetuar a espécie, foi bloqueada para agradar os consumidores.
Essa deturpação da
natureza das coisas é um grave sintoma da alienação que permeia o comportamento
humano. Hormônios para crescer mais rápido, hormônios para evitar a concepção,
hormônios para retardar a velhice: se a vida moderna rola sob o signo da
manipulação dos códigos e dos ritmos, como nos defenderemos dos cânceres, infartos
e tromboses que se sucedem aos processos de aceleração e de castração?
Já nos acostumamos com o fato de que as sementes híbridas valem apenas por uma vez e não servem para a propagação genética. Estamos nos familiarizando com o patenteamento das sementes transgênicas, mas os vegetais já estão avisando que desse jeito as coisas tendem a desandar irremediavelmente.
Se a temperatura média do globo terrestre subir de 2 a 4 graus até o ano 2100, como foi previsto pelo painel de mudanças climáticas da ONU, é provável que o mundo em que vivemos não fique de pé. Sobreviveremos?
Sim, mas com baixas
imensas provocadas pelas consequências do aquecimento global. Tsunamis,
ciclones, nevascas, avalanches, enchentes, incêndios, cataclismas, aneurismas,
hecatombes, apocalipses, o pagode tomando o lugar do samba, mulheres batendo o
martelo na mesa, homens na frente dos espelhos ou recuando às cavernas, as
vacas não reconhecendo os bezerros, as onças fugindo dos macacos e assim ao
revés.
Só não vê quem não quer: boa parte dos distúrbios da natureza é fruto dos exageros cometidos pelos humanos, a saber: empresários que não sabem a hora de parar, militares que exigem armamentos cada vez mais poderosos e políticos que perderam a noção de suas obrigações com as comunidades que os elegem.
A presente crise econômica européia mostra que se esgotou o
modelo de expansão ilimitada da produção material. Os dirigentes políticos e os
líderes empresariais, unidos, continuam
pregando o crescimento econômico como sinônimo de progresso, mesmo estando
claro que falta sustentabilidade ambiental para tamanho ritmo. Ainda não se
aceita a ideia de que é possível elevar o bem-estar sem crescimento econômico.
Como disse o sociólogo francês Jean Baudrillard (1929-2007), já não estamos no crescimento, mas na excrescência. Estamos numa sociedade da proliferação, cujos efeitos se multiplicam com o desaparecimento das causas.
Essa desestruturação é uma loucura, lembra uma máquina que
disparou e opera sozinha, sem controle. Um horror explícito no comportamento
dos vegetais, uns acelerados pelas mudanças climáticas, outros turbinados pelo
afã do lucro. É uma corrida que não vai acabar bem. "
Fonte: Blog de Geraldo Hasse (homenagem ao ótimo texto do autor mencionado)