sábado, 18 de setembro de 2010

Perspectiva 2010 O ano zero da economia limpa (continuação) Carros elétricos

(Continuação da matéria da revista Veja de dezembro de 2009, que estou postando em partes)

 
2. Carros elétricos

Eles vão acelerar ou frear
as mudanças climáticas?
As duas coisas ao mesmo tempo, porque não soltam fumaça pelo
escapamento mas consomem energia que nasce em usinas poluidoras

O calendário de lançamentos de carros elétricos em 2010 parece indicar uma nova etapa na história da indústria automobilística. No fim de 2010, a GM porá nas ruas dos Estados Unidos o Volt. A Nissan entregará o Leaf na Europa e na Ásia. Nenhum dos dois modelos chegará tão cedo ao Brasil. O Volt deve custar algo ao redor de 32 000 dólares. O Leaf não tem preço estimado, mas está sendo anunciado como um produto barato, na cola dos veículos pequenos de passeio. Ambos transportam uma novidade: são realmente 100% elétricos, e não híbridos, como o Prius, da Toyota. O Prius anda prioritariamente com um motor elétrico – quando o motorista precisa de mais potência, um segundo motor, a gasolina, começa a funcionar. O Volt tem um motor elétrico e outro a gasolina, mas só o primeiro faz o carro rodar. Com ele é possível percorrer 64 quilômetros. Ao atingir essa marca, o motor a gasolina passa a funcionar para ativar um gerador que produz energia e recarrega a bateria.

"Não é um falso amanhecer", diz Paul Scott, vice-presidente e fundador da Plug In, uma organização americana que durante muito tempo acusou as montadoras de pouco fazerem em nome dos automóveis elétricos. "Agora o jogo é real." Aposta-se no sucesso – a GM acredita chegar a dezenas de milhares de unidades vendidas até 2013, embora não tenha números precisos – pelo exemplo de outras rápidas explosões tecnológicas atreladas a inovação. "É como o iPhone", compara Bruce Nilles, especialista americano em energia e poluição. "As pessoas podem desejar ter um carro elétrico na garagem porque ele é politicamente correto, e não custa nada estar do lado do bem."

Um olhar mais atento – subtraídos o fascínio na-tural e a ânsia de encontrar uma boia para tirar as três grandes montadoras de Detroit (GM, Ford e Chrysler) da lama – indica, sim, uma possível falsa largada, uma segunda freada, tal como ocorreu em meados da década de 90 com o EV1, o primeiro veículo elétrico moderno produzido por uma grande marca, a GM. Os EV1 foram lançados em 1996, apenas para leasing – eram pouco mais de 1 000 unidades, majoritariamente na Califórnia e Arizona –, mas deixaram de circular em 1999. Entre 2003 e 2004, já com a produção interrompida, saíram do mercado, levados a desmanche ou oferecidos a museus e universidades. Tornaram-se párias, retrato de um tempo industrial que se queria apagar. "Quem matou o carro elétrico?", pergunta um documentário premiado, disponível nas locadoras brasileiras. Não há apenas um suspeito. A pressão da indústria petrolífera ajudou. A própria GM percebeu que era ideia deficitária. Além disso, a fragilidade da rede de realimentação das baterias – e a baixa autonomia que elas ofereciam – decretou a marcha a ré.

No documentário, o ator Tom Hanks, sempre muito certinho, aparece em um trecho do programa David Letterman Show. Instado a dizer por que gostava de andar num modelo sem gasolina, respondeu: "Porque quero salvar os Estados Unidos". Se não deu certo naquele tempo, por que daria agora? É difícil, por óbvio, salvar os Estados Unidos, se é que os Estados Unidos precisam ser salvos, apenas trocando de carro – e entender isso é olhar as características do elétrico confrontado com os modelos tradicionais.

Uma pergunta se impõe: o elétrico é um risco ou uma solução para o planeta? "Os automóveis elétricos devem ser recompensados por sua eficiência energética, não por transferirem as emissões de gases dos escapamentos para as chaminés das usinas", anota relatório da Associação Britânica Ambientalista de Transporte. Em outras palavras: as emissões de dióxido de carbono pelo carburador inexistem nos carros elétricos, e no entanto eles só poderão circular porque recebem eletricidade produzida em muitos países por usinas movidas a combustível fóssil. De nada adianta usar um automóvel elétrico na China, por exemplo, se as usinas geradoras são alimentadas por carvão. Estimativas americanas indicam que, se eventualmente 250 000 carros elétricos fossem plugados para recarga ao mesmo tempo em um início de noite, seria necessário erguer outras 160 usinas de energia nos Estados Unidos apenas para alimentá-los. "Não será nada agradável ser acusado pelo vizinho do blecaute de todas as noites", ironiza Ed Kjaer, diretor de transporte elétrico de uma operadora de eletricidade da Califórnia. Há outro alerta no estudo: no melhor dos cenários, apenas no ano de 2030 esses veículos produzirão impacto real na diminuição das emissões, quando houver frota maior dessa família automobilística nas ruas e estradas.

Até lá as questões são mais comezinhas. Como superar a principal dificuldade, a reduzida autonomia da bateria? Há avanços, mas ainda assim a bateria de lítio do Volt, versão avantajada das que equipam celulares e laptops, deve custar em torno de 10 000 dólares, com 200 quilos. Solução mais interessante – a caminho de uma mudança de modelo, ainda sutil – encontrou a Renault-Nissan ao selar parceria com uma empresa israelense, a Better Place (em inglês, lugar melhor, referência ao objetivo de criar um mundo mais verde). O plano prevê a instalação de uma ampla rede de 500 000 pontos de recarga, além de postos de troca de baterias em Israel, onde haverá o teste piloto. As baterias poderão ser recarregadas de duas maneiras: em postos especializados ou simplesmente pela troca das gastas por novas, completas, sem perda de tempo. É ideia próxima à das operadoras de celular. Há planos de oferecer o equipamento a preço baixo, sem impostos (o carro), em troca da fidelidade na compra dos serviços (energia, sob a forma de baterias carregadas). Não parece estar no cerne da sustentabilidade, mas é um avanço imenso – o próximo passo pode ser o compartilhamento de veículos, como já ocorre com um sistema de aluguel de bicicletas em Paris, o Vélib. Filho dessa iniciativa, no fim de 2010 passa a funcionar o Autolib, o carro individual de uso coletivo.

Em Curitiba, o urbanista Jaime Lerner, ex-prefeito da cidade, apresentou recentemente o protótipo de um veículo elétrico para um passageiro inspirado no sistema parisiense. A ideia é que os carrinhos sejam alugados em áreas de grande circulação, próximo a terminais de ônibus ou metrô. Os usuários poderão retirá-los e devolvê-los em qualquer estação, pagando com cartão de crédito. Do ponto de vista do consumidor, pode ser um grande negócio – afinal, pagamos (e bem) por um automóvel para usá-lo apenas umas três horas por dia; nas outras 21 ele fica parado. O dinheiro economizado dá e sobra para alugar um belo carrão na hora de namorar, fazer compras e passear com a família.

O difícil será superar um dos monumentos do consumo nos séculos XX e XXI – o anseio de cada pessoa ter o seu carro, símbolo de independência e liberdade, mesmo colado a modismos e exageros. Além disso, a maioria dos proprietários insiste em levar apenas uma pessoa dentro do veículo, ou seja, o próprio motorista. Enquanto a nova realidade não chega, o modo de aliviar a poluição e o trânsito continuará sendo o bom senso, a combinação entre transporte coletivo, carona, bicicletas e caminhadas, onde for possível.


(segue)

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